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Sócia-fundadora, diretora executiva, de jornalismo e projetos do Portal, I'sis é jornalista e bacharel interdisciplinar em artes formada pela Universidade Federal da Bahia, além de técnica em comunicação visual e pós graduanda em Direitos, Desigualdades e Governança Climática. É criadora e podcaster do Se Organiza, Bonita!
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Designer de soluções e ilustradora do Portal, Rayssa é multiartista baiana, designer e historiadora em formação pela UNEB. Trabalha com projetos visuais e sociais voltados à negritude desde 2018, como no Diário da Mari, coletivo ZeferinaS. Usa a comunicação visual como uma ferramenta social por meio da ilustração.
Especialistas alertam sobre impactos da ‘adultização’ de crianças e adolescentes nas redes
Publicado em 20/08/25 às 07:20
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O vídeo publicado pelo influenciador Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, em 6 de agosto de 2025, ultrapassou 47 milhões de visualizações em menos de duas semanas e reacendeu um debate urgente no Brasil: a adultização de crianças e adolescentes.
Embora não seja um fenômeno novo, a adultização ganhou novos contornos com a intensificação da mediação social pelas plataformas digitais. A exposição precoce de menores, especialmente em contextos sexualizados, traz implicações psicológicas, sociais e jurídicas que não podem ser ignoradas.
Vídeo/Reprodução: Felca/YouTube
O Artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” de crianças e adolescentes.
Além disso, o Artigo 5º do ECA reforça que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”
A denúncia feita por Felca, embora não trate de um tema inédito, deu visibilidade renovada a um problema frequentemente apontado por organizações de defesa da infância, pesquisadores e pelo jornalismo qualificado.
O vídeo escancara como funcionam os algoritmos das redes sociais e mostra que, quando condicionados, esses sistemas podem favorecer até mesmo grupos coordenados que atuam em supostos esquemas de pedofilia e exploração sexual infantil.
O Portal Black Mídia ouviu uma psicóloga e uma advogada criminalista, ambas da Bahia, para compreender os efeitos psicológicos desse fenômeno social e os possíveis desdobramentos jurídicos do caso mais emblemático citado por Felca: o do influenciador Hytalo Santos e o da menor de idade Kamilinha.
A psicóloga Analy Andrade alerta que a adultização não é um fenômeno isolado, mas fruto de uma cultura que associa valor social sobretudo ao corpo feminino, mesmo em idades em que não há maturidade para isso. “A criança não tem maturidade psíquica para lidar com expectativas adultizadas, seja em relação ao corpo, ao comportamento ou à sexualidade”, afirma.
Analy é psicóloga clínica, escolar, consultora de saúde mental e psicologia. Dentro de sua atuação profissional, baseia-se em uma perspectiva racializada.
Segundo ela, a pressão exercida pelas redes sociais agrava os danos: “O ambiente digital cria uma pressão por likes, comentários e validação social que afeta diretamente a autoestima infantil. Quando um corpo infantil é colocado no lugar de objeto de desejo ou consumo, estamos diante de uma violência simbólica que deixa marcas.”
Também no Estatuto da Criança e do Adolescente, o Art. 17 garante o direito ao respeito, que envolve a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias, crenças, espaços e objetos pessoais. Ou seja, quando a imagem de uma criança é usada de forma sexualizada, há violação desse direito.
Então, mesmo sem nomear a adultização, o ECA pressupõe que, quando uma criança ou adolescente é colocada em situação sexualizada, ela é vítima, e cabe à família, sociedade e poder público protegê-la e responsabilizar quem promove esse tipo de exposição.
Persecução penal não depende da vítima
Persecução penal é o nome dado ao conjunto de atos do Estado para investigar, processar e punir uma infração penal. No campo jurídico, a advogada criminalista Fernanda Graziella, natural de Santo Antônio de Jesus e nomeada presidenta da Comissão de Proteção aos Direitos das Mulheres da OAB da Bahia, explica que, em casos como o que envolve a influenciadora Kamilinha, atualmente menor de idade, e o também influenciador Hytalo Santos, a persecução penal não depende da vítima.
“Não depende dela querer que ele seja preso ou não, porque se trata de crime de ação penal pública. A decisão sobre denúncia cabe ao Ministério Público, independentemente da vontade da vítima ou de sua família”, detalha.
A informação amplamente veiculada pela imprensa é a de que as apurações do Ministério Público da Paraíba (MPPB) contra o influenciador começaram em 2024 e foram baseadas em denúncias recebidas via “Disque 100”.
A investigação em andamento, ampliada pela denúncia de Felca, levou à prisão de Hytalo e seu marido, Israel Natã Vicente, que avalia se os conteúdos publicados, que frequentemente exibem adolescentes em danças ou abordando relacionamentos, possuem teor sexualizado e ferem o ECA.
Sobre as possíveis consequências, Graziella é categórica: a possibilidade é de uma condenação de mais de 50 anos de prisão.
“Temos o tráfico infantil ou a exploração sexual de crianças e adolescentes, o tráfico de pessoas — no caso, tiravam essas crianças de suas casas para levá-las a outro espaço —, a exposição ou constrangimento de crianças e adolescentes com conteúdos de conotação sexual, a exploração de menores, lavagem de dinheiro, além de mais de cinco crimes dos quais eles são acusados. Também estão incluídos a produção e distribuição de conteúdo com menores em redes sociais, que é considerado crime, e o aliciamento ou instigação da participação de menores em práticas libidinosas. Temos ainda o constrangimento de crianças e adolescentes. Então, somando esses nove crimes, as penas podem ultrapassar mais de 50 anos de prisão.”
Responsabilidade dos pais e plataformas
Graziella também chama atenção para a corresponsabilidade dos pais.
“Há uma responsabilidade dos pais, enquanto família — falo pai e mãe — de impedir que essas crianças sejam exploradas. E quando eu estimulo, eu pratico os mesmos crimes. Então, não há uma isenção de pena ou de punibilidade para essas mães, para esses pais”.
A advogada, que é especializada na defesa das mulheres, afirma que, infelizmente, essas crianças muitas vezes são instrumentalizadas pelos próprios pais para fugir da realidade social em que vivem. “O que é que eu vou ganhar com isso? Eu já passei muita privação, então eu não quero que minha filha passe”. E, nesse caso, quem diz não concordar com a ação, quando a responsabilidade pela criança e adolescente é compartilhada, precisa agir.
Outro ponto enfatizado pela jurista é o papel das plataformas digitais.
“O delegado ou a delegada vai indiciar as partes que estão sendo acusadas. E, nesse momento, ela pode indiciar também os pais responsáveis dessas crianças e adolescentes. Depois, o inquérito concluído será encaminhado ao Ministério Público, que formalizará a denúncia.”
Ela enfatiza que é provável haver uma resposta mais rápida quanto às tramitações de projetos que responsabilizam as plataformas por conteúdos que ferem os direitos das crianças e dos adolescentes.
“Estamos aí com o Marco da Internet sendo analisado, essa responsabilização das empresas, e sim, gente, isso tem que ocorrer porque há um lucro muito grande dessas plataformas com esse conteúdo que é criminoso. E só há esse consumo desse conteúdo porque eles enviam em razão do algoritmo. O mecanismo de expansão e divulgação desses conteúdos é da própria plataforma, então elas têm responsabilidade.”
Interseccionalidade e desigualdades
Para Graziella, o tema também não pode ser dissociado das desigualdades sociais. A advogada destaca que gênero, raça e classe atravessam diretamente a forma como a sociedade responde a esses casos. De acordo com a criminalista, a leitura interseccional é indispensável para compreender por que casos semelhantes recebem tratamentos distintos.
Do lado psicológico, Analy Andrade reforça que essa diferença de tratamento também impacta o desenvolvimento emocional das crianças. Ela alerta que há muitos recortes “dentro desse lugar da infância”.
“Se a gente não se debruçar, a gente coloca todo mundo dentro da mesma caixa em detrimento de uma construção social pautada pelo racismo estrutural. O simbolismo e a significação do corpo negro vão ser totalmente diferentes do simbolismo e do significado de uma criança branca. Quando falamos de socialização precoce, estamos fomentando uma omissão desses indivíduos que estão em formação”, explica. “Para as crianças negras, elas não têm tempo pleno para construir habilidades socioemocionais diante de situações como a morte de pessoas próximas ou a violência nas comunidades periféricas, quando a bala atinge crianças e adolescentes sem necessariamente estarem envolvidos com o tráfico”, diz a psicóloga.
Caminhos para prevenção e proteção
A repercussão do vídeo de Felca mobilizou parlamentares e entidades de proteção à infância, que pedem atualização da legislação para crimes virtuais. Para a psicóloga Analy Andrade, a solução passa por corresponsabilidade. “É preciso compreender que o direito da criança precisa ser reservado à própria criança. Enquanto adulto, você se abdica disso e precisa responder por isso”, afirma. “É uma linha muito tênue e delicada afirmar qual é o lugar da criança nas redes sociais, que, para mim, particularmente, não deveria ter lugar. Ali é um espaço que pode gerar vários tipos de encaminhamentos. A criança não tem amadurecimento sem supervisão, colaboração e entendimento de pessoas que se coloquem como cuidadores dela”, conclui.
No campo jurídico, Fernanda Graziella compreende a interseccionalidade como um caminho:
“Eu entendo que hoje nada pode ser feito sem interseccionalidade. O corpo das mulheres pretas, das mulheres negras e dos meninos também, é simplesmente sexualizado. Eu digo que vivemos em um limite muito tênue do que é lido como bom ou ruim”, aponta a advogada.
“Nós não podemos, em momento algum, deixar de ressaltar que é uma população que sofre exploração de todos os aspectos, né? Os meninos pretos não têm sequer o direito de dirigir. Um preto não pode correr, infelizmente. Então, eu não tenho como, hoje, em nenhum processo judicial — seja este caso ou qualquer outro — fazer uma análise que esteja dissociada da raça ou do gênero”, conclui.
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