Texto:

Lívia Oliveira

Jornalista do Portal, Lívia Oliveira é comunicóloga formada em jornalismo e escritora soteropolitana, apaixonada pela comunicação. Autora do romance "Coração Gelado", acumula passagens no Jornal A Tarde, Criativos.

Ilustração:

Rayssa Molinari

Designer de soluções e ilustradora do Portal, Rayssa é multiartista baiana, designer e historiadora em formação pela UNEB. Trabalha com projetos visuais e sociais voltados à negritude desde 2018, como no Diário da Mari, coletivo ZeferinaS. Usa a comunicação visual como uma ferramenta social por meio da ilustração.

Woke além da hashtag

Com novas versões de obras consagradas e o engajamento online, a cultura “woke” dá voz a histórias marginalizadas e combate o etnocídio cultural.

Ilustração: Rayssa Molinari/Portal Black Fem — Todos Direitos Reservados, jamais reproduza sem os créditos

Seja em trends do TikTok ou em threads no X, a cultura woke virou pauta constante nas redes sociais, onde comportamentos cotidianos e modos de pensar são revisados sob uma nova lente crítica. A expressão atravessa fronteiras digitais e levanta debates sobre racismo, gênero e desigualdade. Mas, afinal, o que significa estar “woke” e por que essa palavra se tornou tão central nas discussões culturais e políticas de hoje?

Ser “woke” é, em tradução livre, estar acordado para as injustiças do mundo e discriminação racial. O termo nasceu nos movimentos negros dos Estados Unidos, ganhou corpo no ativismo digital e atravessou fronteiras.

A origem do termo woke remonta à década de 1960, quando o romancista William Melvin Kelley publicou, em 1962, um artigo no The New York Times intitulado “If You’re Woke, You Dig It” (“Se você estiver acordado, entenderá”). Naquele contexto estava ligada a um estado de vigília e consciência social, especialmente diante das injustiças raciais nos Estados Unidos.

Décadas depois, o termo ressurgiu no movimento Black Lives Matter, que denunciava a violência policial contra a população negra. O termo se expandiu para falar de pessoas atentas a questões sociais, de gênero, orientação sexual, representatividade e direitos humanos em geral.

A chamada “cultura woke” se tornou uma forma de se referir a práticas e discursos que tentam incluir mais diversidade e questionar estruturas históricas de opressão. De um tempo para cá, o termo passou a carregar um rótulo polêmico: para uns, sinônimo de consciência e transformação social; para outros, um exagero ligado ao “politicamente correto”.

“Essa expressão já chega no Brasil de forma deturpada e a gente vai passar por um processo muito difícil. Ela chega para sinalizar e marcar as produções que tem diversidade isso é muito ruim, porque ela vira quase uma palavra de ordem para as pessoas que não fazem a menor ideia do que estão falando”, assim explica Andreza Delgado, curadora de arte, diretora criativa, apresentadora, produtora de conteúdo e especialista em Cultura Nerd.

No entanto, atrás da disputa semântica, a chamada cultura woke toca em questões centrais da vida da juventude negra brasileira: da educação ao mercado de trabalho, da produção cultural à autoestima coletiva. O escritor, publicitário, palestrante, apresentador e criador de conteúdo, Alê Garcia, concorda com Andreza: o termo já desembarcou no país não só carregando seu sentido original.

“Chegou já contaminado por uma carga pejorativa, usada para ridicularizar e deslegitimar movimentos sociais e raciais. O que nasceu como uma expressão ligada à vigília, ao estar desperto para injustiças, acabou sendo sequestrado pelo discurso conservador que tenta reduzir tudo a ‘mimimi’ ou exagero identitário “, afirma.

Mas em meio a essa aterrissagem deturpada, há também experiências positivas. “Ainda assim, não acho que esteja completamente esvaziado. Para quem vive as tensões do racismo, da homofobia, da misoginia, continua sendo uma chave de consciência. Talvez menos no termo em si, mais na prática de se manter atento às violências estruturais”, completa Alê.

O impacto, ainda de acordo com o escritor, já é perceptível quando só o assunto causa incômodo.

“No mercado, vemos empresas tensionadas entre performar diversidade como estética e transformar a cultura organizacional de fato. Na mídia, a cultura woke provoca deslocamentos: personagens, narrativas e criadores negros e periféricos ganham espaço, mas também enfrentam o backlash (retaliação) imediato de quem se sente ameaçado. Já nas políticas públicas, a disputa é mais explícita: pautas ligadas a gênero, raça e direitos humanos se tornam moeda política, ora fortalecidas, ora atacadas, dependendo do ciclo de poder”, enfatiza.

Etnocídio cultural

Nos últimos anos, a juventude negra tem sido alvo direto dessa batalha de narrativas. Se por um lado há acusação de “radical” por exigir mudanças, por outro lado encontra na cultura woke  uma lente para compreender o racismo estrutural, reivindicar espaços e criar novas possibilidades de futuro que não conversam com etnocídio cultural.

O termo se refere a destruição sistemática das práticas, línguas, símbolos e modos de vida de um povo, mesmo sem a eliminação física de seus integrantes. Ao contrário do genocídio, que busca aniquilar vidas, o etnocídio atua apagando identidades coletiva.

Isso acontece quando o funk é criminalizado, quando o quadrinho geek produzido na periferia não encontra editoras, quando a literatura negra é tratada como nicho e não como parte do cânone nacional. É contra esse apagamento que muitos têm “acordado”: questionando o que se consome, quem se escuta, quais histórias ganham espaço.

Autor do livro “A sordidez das pequenas coisas”, finalista do prêmio Jabuti, Alê Garcia pontua que o etnocídio cultural funciona através da invisibilização das narrativas não brancas e homogeneização.

“A memória e a ancestralidade são formas de resistência. Quando escrevo ou quando produzo projetos que convocam essas dimensões, estou disputando narrativa contra o apagamento”, conta.

Produções culturais com diversidade

A cultura woke também se manifesta em releituras de clássicos e na ocupação de espaços antes inacessíveis. A presença de protagonistas negros em montagens de Shakespeare ou mesmo adaptações audiovisuais que ressignificam personagens históricos a partir de olhares não brancos são uma amostra do termo.

Quando esses filmes, séries ou peças de teatro pegam obras clássicas e fazem adaptações com diversidade, a ideia dessa escolha é questionar a naturalização de um padrão homogêneo, reimaginando histórias universais sob uma lente mais inclusiva.

Um dos exemplos é o recente live-action da Disney de A Pequena Sereia (2023), em que a personagem Ariel foi interpretada por uma atriz negra (Halle Bailey). Na época, a internet foi dividida entre mães pretas que utilizavam as redes sociais para mostrar as reações animadas de suas filhas ao assistir ao filme e pessoas com discurso de ódio afirmando que a sereia deveria ser uma mulher branca, assim como no filme animado homônimo de 1989.

Foto: Disney

“Acho que tem custado mais caro, principalmente para populações não brancas, as produções de releituras com diversidade. Como o exemplo de A Pequena Sereia. Tem sido muito difícil, porque as pessoas têm desgastado mesmo a saúde mental. Eu fui uma pessoa que ficou muito mal, porque se via muito comentário difícil, beirando criminoso”, explica Andreza.

Ela também cita o filme Pecadores (2025), dirigido por Ryan Coogler, porque assim como no debate sobre a representatividade em A Pequena Sereia, o cinema de terror recente tem sido um terreno fértil para revisitar clássicos códigos narrativos com protagonismo negro.

Pecadores retoma a estética do horror psicológico e da crítica social, colocando personagens negros no centro de conflitos morais e culturais que historicamente foram reservados a narrativas brancas. Essa escolha dialoga com a tendência inaugurada (e popularizada) por Jordan Peele em Corra! (2017), em que o terror vai além do entretenimento e se torna metáfora para o racismo estrutural e as violências invisibilizadas.

Andreza, também fundadora da Perifacon, conhecida como Comic Con da Favela por democratizar a cultura nerd, pop e geek através de convenções em favelas do Brasil, destaca que aumento de bilheteria e avanço de mais projetos seguindo a diversidade são alguns dos impactos.

“Esses são efeitos positivos, mas eu acho que tem uma questão de desgaste quase que mental. Eu, enquanto uma produtora de conteúdo, me sinto às vezes muito desgastada, fico chateada. Às vezes eu fico pensando que a gente precisa pensar em mais coisa original do que releituras”, a diretora criativa relata.

Cultura woke e juventude contrapondo homogeneização

Alê enfatiza que a cultura woke, ao reivindicar a centralidade de narrativas negras e periféricas, funciona como um contraponto direto ao etnocídio cultural. 

“A memória coletiva e a ancestralidade devolvem complexidade e continuidade à experiência negra. Elas funcionam como antídoto porque lembram que nossa cultura não começa nem termina no olhar branco: ela tem raízes profundas, que atravessam oceanos e séculos, e segue se reinventando no presente”, destaca Alê Garcia.

Ainda segundo Alê, é tanto uma potência quanto um risco a juventude negra se conectar com debates referentes a raça e cultura pela internet. 

“A internet amplia vozes e permite que uma menina negra de periferia dialogue com referências globais, acesse narrativas que antes eram restritas. Isso é potência. Mas também é risco porque os mesmos algoritmos que possibilitam visibilidade podem amplificar ódio, manipulação e backlash”, exemplifica.

Com isso, o movimento a facilmente se torna caricatura e objeto de desinformação. “A juventude navega nesse campo minado, mas também desenvolve novas ferramentas críticas, memes, linguagens híbridas que subvertem esse mesmo espaço”, completa.

Uma das principais formas de contrapor o etnocídio é através da criação de espaços próprios onde essas culturas, as vozes e histórias são contadas. Andreza Delgado retoma a importância da originalidade.

“A gente precisa de Perifacon, a gente precisa de mostras. A gente precisa criar os nossos espaços, porque achar que esses espaços tradicionais vão dar conta é uma mentira”, pontua.

De acordo com ela, é menos trabalhoso e mais impactante trazer representatividade original, uma vez que são personagens ou figuras que não estão constituídas no imaginário da branquitude. 

Ação, não só discurso

“A consciência é só o primeiro passo. O desafio é canalizar essa energia em organização. Política, comunitária, empresarial. O caminho passa por ocupar espaços institucionais, mas também por fortalecer redes de economia negra, coletivos culturais, iniciativas educacionais”, afirma Alê Garcia.

Em outras palavras, a cultura woke não é e não pode ser um modismo de internet. Ela deve e está presente em projetos comunitários que democratizam o acesso à cultura nerd nas periferias, em cineclubes que exibem filmes de diretores negros, em coletivos de literatura que recuperam vozes de autores apagados. Ambos criadores defendem que é esse encontro entre consciência crítica e prática .

Andreza Delgado reforça essa perspectiva ao lembrar que experiências culturais também podem se tornar estratégias econômicas: “Eu trago Pecadores e os filmes do Jordan Peele, porque são experiências interessantes, inclusive no lugar de fazer a grana girar entre a gente e criar nossos próprios estúdios”.

Ainda que muitas vezes reduzida a memes ou disputas superficiais nas redes sociais, a cultura woke se sustenta em algo mais profundo: a necessidade de criar práticas coletivas que resistam ao etnocídio cultural e ampliem o acesso a direitos. O estar “acordado” pode se materializar em mudanças estruturais, desde o fortalecimento de coletivos culturais e educacionais até a criação de espaços de produção artística e empreendedora.

“Passa por transformar a inquietação individual em mobilização coletiva. A cultura woke pode ser o estalo, mas a ação precisa se sustentar em práticas que durem além da hashtag: projetos, políticas, ocupação de poder”, conclui Alê Garcia.

Glossário Woke

Para entender melhor a cultura woke, principalmente na internet, é preciso estar a par dos termos e seus significados relacionados. O Portal Black Midia preparou um glossário de termos para você começar a ficar por dentro dos debates.

Woke: Originalmente do inglês awake (“acordado”), significa estar desperto para injustiças sociais e raciais. No Brasil, chegou já carregado de tom pejorativo, usado por setores conservadores para ridicularizar movimentos de diversidade.

Etnocídio cultural: Processo de apagamento sistemático de uma cultura, que pode ocorrer sem violência física direta. Manifesta-se pela invisibilização de línguas, saberes, memórias, símbolos e práticas de um povo, substituídos por valores dominantes.

Backlash: Reação contrária, geralmente intensa e negativa, a avanços em direitos ou representatividade. Ex.: quando uma atriz negra assume o papel de um clássico personagem branco, e há ondas de ódio online.

Tokenismo: A prática de incluir uma pessoa negra, indígena, LGBTQIA+ etc. apenas para “cumprir cota” e sinalizar diversidade, sem de fato mudar estruturas ou valorizar essas vozes.

Gaslighting: Manipulação psicológica em que alguém tenta fazer outra pessoa duvidar de sua percepção da realidade. Muito citado em contextos de racismo ou machismo, quando experiências de opressão são deslegitimadas.

Cancelamento: Fenômeno de boicotar publicamente alguém (artista, influenciador, marca) por atitudes ou falas consideradas problemáticas.

Interseccionalidade: Conceito criado por Kimberlé Crenshaw que mostra como diferentes sistemas de opressão (racismo, machismo, classismo, LGBTQIA+fobia) se sobrepõem e se entrelaçam, gerando experiências únicas de exclusão.

Snowflake: Termo usado de forma pejorativa para descrever pessoas consideradas “sensíveis demais” a críticas ou injustiças. Muito usado por grupos anti-woke.

Virtue signaling: Quando alguém demonstra publicamente apoio a causas sociais apenas para parecer moralmente superior, sem real compromisso ou prática por trás.

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