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Sócia-fundadora, diretora executiva, de jornalismo e projetos do Portal, I'sis é jornalista e bacharel interdisciplinar em artes formada pela Universidade Federal da Bahia, além de técnica em comunicação visual e pós graduanda em Direitos, Desigualdades e Governança Climática. É criadora e podcaster do Se Organiza, Bonita!
Diversidade sem investimento não passa de encenação
Publicado em 27/05/2025 às 17h
Colagem Portal Black Mídia
O discurso sobre diversidade nunca esteve tão presente. Empresas, fundações e instituições públicas estendem tapetes para fotos, campanhas e eventos que exaltam a pluralidade. Mas, na prática, quem sustenta o trabalho de comunicação feito por mídias negras, periféricas e de territórios marginalizados? Quase ninguém.
A contradição é muito direta: celebram a diversidade no discurso, mas deixam sem financiamento justamente quem comunica e informa a partir dessa perspectiva. Essa prática tem nome diversity washing e no campo da comunicação ela é absolutamente cruel, porque atinge diretamente um serviço essencial à democracia: o jornalismo feito pelas mãos e vozes de quem nunca teve espaço garantido.
Não faltam palcos, prêmios e painéis sobre diversidade. O que falta é dinheiro no caixa das mídias negras, periféricas e de favelas, nas mãos de quem não faz só entretenimento ou só publicidade. Comunicação racializada, diferente do que é cuspido por aí como informação verídica, não é um hobby, não é ativismo voluntário, não é “chapismo”, é trabalho, serviço público.
Mas boa parte das empresas e até da filantropia prefere o caminho mais fácil: associar suas marcas às imagens de corpos racializados, enquanto negligenciam qualquer política concreta de fortalecimento dessas mídias.
Uma lógica presente no mundo inteiro
A prática de diversity washing não é nova, nem exclusiva do Brasil. Nos Estados Unidos, há casos emblemáticos que revelam como o discurso sobre diversidade muitas vezes serve mais para autopromoção do que para transformação.
Um dos exemplos que ficaram mais conhecidos nos EUA é o da Nike, que após os protestos do Black Lives Matter em 2020 lançou campanhas de marketing com discursos antirracistas. A empresa chegou a adaptar seu famoso slogan para “For Once, Don’t Do It”, pedindo que as pessoas não ignorassem o racismo. Mas a movimentação foi rapidamente questionada. Enquanto colocava rostos negros na linha de frente da publicidade, a Nike era cobrada por manter uma estrutura interna majoritariamente branca, tanto nos cargos de liderança quanto na cadeia de decisões. Além disso, acumulava denúncias por exploração de mão de obra em países do Sul Global quase sempre, corpos racializados.
Outro exemplo estrutural vem de Hollywood. Depois da onda de protestos, os estúdios passaram a acelerar a presença de pessoas negras nas telas, nas campanhas e nos tapetes vermelhos. No entanto, relatórios como o “Hollywood Diversity Report” da UCLA (2021) mostram que a diversidade cresceu na frente das câmeras, mas não nos bastidores. Diretores, roteiristas, produtores e executivos seguem sendo majoritariamente brancos. Ou seja, o mercado quer as narrativas negras desde que não precise ceder o controle sobre elas.
Esses dois casos ajudam a entender como opera esse cinismo institucional: não há problema em celebrar a diversidade, desde que ela seja controlada, editada e mantida sob os critérios de quem historicamente detém o poder.
A comunicação negra não sobreviverá de likes
O dado apresentado no 13º Congresso do GIFE deixa isso explícito: apenas 2% do dinheiro da filantropia vai para a comunicação. Quando olhamos para a comunicação racializada, esse percentual se torna ainda mais simbólico ou quase invisível, quando se trata de comunicação racializada em estados do nordeste, inexistente.
O Relatório do Fundo de Apoio ao Jornalismo (2025) confirma o cenário: a maior parte das iniciativas jornalísticas independentes vive sob ameaça financeira constante. A maioria sobrevive à base de trabalho precarizado, editais pontuais ou vaquinhas. Não por falta de qualidade, mas por falta de interesse estrutural em garantir que essas vozes permaneçam.
Ainda de acordo com o relatório do Fundo de Apoio ao Jornalismo, nos últimos dois anos, as dez principais fundações que investiram no jornalismo direcionaram mais de 16 milhões de dólares para 81 organizações, 10 parte de um ecossistema de mais de 14 mil veículos (Atlas da Notícia). Destas, apenas nove organizações receberam metade do investimento total.
Além da desigualdade no montante distribuído, os investimentos também estão fortemente concentrados na região Sudeste, onde 79% das organizações financiadas estão localizadas. Em seguida, aparecem o Nordeste (9%), organizações internacionais (5%) e o Norte (5%), sendo este último representado por apenas duas iniciativas. As regiões Sul e Centro-Oeste praticamente não receberam apoio.
O Atlas da Notícia evidencia que 50,4% dos veículos jornalísticos estão no Sudeste, seguido pelo Sul (18,7%), Nordeste (14,8%), Centro- Oeste (8,5%) e Norte (7,5%)12. Para o Faj, faz sentido, portanto, que haja um investimento maior nas regiões com maior concentração de organizações, no entanto, os números também evidenciam uma sobrerrepresentação do Sudeste e uma sub- representação das demais regiões no acesso a financiamento.
Consumir informação jornalística muitas vezes é de graça, produzi-la, não
O mercado quer campanhas diversas, mas não quer ceder poder. Quer nossas fotos, nossos rostos, nossos discursos no mês da consciência negra, mas não quer investir no que permite que a gente exista o ano inteiro. Dão visibilidade desde que a autonomia continue sob controle. Querem nossas histórias, mas não querem financiar nossas redações, nossos equipamentos, nossos salários.
Dou um exemplo: Ontem (26), durante o 15º Fórum da Internet no Brasil, foi lançada a Incubadora de Soluções para Mídias Negras, independentes e periféricas pelo Governo Federal. Embora essa seja uma política pública inédita voltada ao fortalecimento de micro, pequenas e médias iniciativas jornalísticas com foco em mídias negras, periféricas e independentes, todos veículos presentes, ou pelo menos a sua maioria, aguardavam uma notícia diferente da que foi anunciada. Ainda assim, seguimos esperançosos que com abertura de diálogo, hajam direcionamentos melhores para estes tipos de “soluções”.
E não é que não precisemos de atualizações, cursos e mentorias, mas basta acessar portalblackmidia.com.br, sitenegre.com.br ou qualquer outro veículo independente, racializado e periférico do nordeste, até mesmo do Brasil para saber que a maioria dos veículos nordestinos sabe fazer jornalismo, já tem algum letramento sobre as necessidades de financiamento, precisa mesmo é do dinheiro, precisa é do reconhecimento da comunicação como direito, direito esse, fundamental, que é estar bem informado, de forma legítima, responsável.
O jornalismo racializado não é só importante para quem produz. É infraestrutura de democracia. É quem documenta o que a imprensa tradicional ignora. É quem comunica no idioma do território, com os códigos da quebrada, da pele, da vivência. Tratar isso como algo periférico, secundário ou pontual não é só negligência. É a sabotagem de um ecossistema inteiro de produção de informação que combate desigualdades.
Não se faz comunicação sem recursos. O aplauso não paga servidor, internet, energia, câmera ou salário de quem apura, escreve, edita e publica. O discurso bonito sobre diversidade não tem valor real se não se transforma em contratos, financiamento recorrente e reconhecimento material. É sobre redistribuição de recursos, não sobre estética de inclusão.
Se há coragem para estampar rostos negros nas campanhas, também precisa haver coragem para financiar as mídias negras que sustentam essas narrativas. O diversity washing precisa ser denunciado, porque diversidade sem investimento não passa de encenação.
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